A construção científica do gênero “inferior”


Muitos foram os pesquisadores que escrevem a respeito da construção da inferioridade pautada em pressupostos biológicos, sejam mulheres, negros ou pobres, as classes não dominantes foram foco de estudos que visavam encontrar características físicas que justificassem seu caráter inferior em relação ao ideal do homem branco europeu. Inclusive, no livro “A Falsa Medida do Homem” o autor Stephen Gould afirma que os racistas e sexistas que conduziam essas pesquisas partiam do princípio de que a estratificação social era mero reflexo da biologia. As conclusões não eram fruto de análise documental, mas sim, de seus próprios preconceitos (Gould, 1999: 74).

A ciência da diferença, de forma geral, se organiza de forma mais sistemática em meados do século XVIII, mas é preciso ter em mente que até o século XVII, a visão a respeito do corpo e da sexualidade era resultado da combinação das normas de ordem social, o respeito pela religião e o crescimento demográfico. O corpo é visto como o agente dos atos sexuais proibidos, ele protagoniza as dificuldades das imposições culturais e legislativas (Matthews-Grieco In Vigarello, 2008: 218).  A cultura do período era categórica em tachar os indivíduos e principalmente seu comportamento como “permitido” ou “proibido”, a partir de critérios que variavam de acordo com a classe social, idade, normas médicas e, principalmente, o sexo, às mulheres eram impostas normas de convívio social bem diferentes às que eram impostas aos homens.

Ao final do século XVIII, já havia, na população, a convicção de que saúde e doença eram fenômenos de grande importância para os indivíduos, a comunidade e o corpo político (Rosen, 1994: 111). Neste contexto, a classe médica, aliada ao Estado, e persuadida pela mentalidade burguesa, passou a definir quais as formas de normatizar, higienizar e otimizar a vida e o trabalho da população, fazendo uso da ética, disciplina e propostas higiênicas cada vez mais arraigadas nos lares e estabelecimentos. A ascensão dessa burguesia vem acompanhada de uma nova ferramenta de poder baseada na disciplina. Esse poder disciplinar se caracteriza por uma intervenção positiva, que gera transformação social.

O projeto normativo burguês se baseia na norma como um critério de qualificação e de correção ao mesmo tempo. Surgem estudos para determinar o conceito de “normalidade”. No caso, por exemplo, de averiguação da altura média de uma população, após medir uma quantidade determinada, o número que aparecer mais, proporcionalmente, torna-se a média, ou seja, aquilo que é considerado “normal”. Este raciocínio pode ser aplicado em diversos aspectos, sejam eles quantificáveis, como a altura, ou qualificáveis, como o comportamento moralmente aceito e dito “normal” (Miskolci, 2002/2003: 110). Nesse contexto, a histeria surge como uma anormalidade da psique feminina.

Simultaneamente, através do fenômeno da medicalização dos hospitais, a medicina passa a exercer um papel fundamental no controle e administração dos corpos, interferindo no cotidiano. É ela quem vai definir as regras que vão orientar a vida moderna, não apenas no que diz respeito a doenças, mas também em vários aspectos da vida dos indivíduos, como a sexualidade, a fertilidade e outros. (Foucault, 1996).  Diante da possibilidade de aprimorar a espécie humana, os valores higiênicos e valorização da força física eram primordiais (Nunes, 2011: 138). A preocupação com a questão demográfica e a busca por um controle populacional são fatores estritamente ligados à medicalização do corpo feminino (Vieira, 2002).

Na tentativa de promover um crescimento populacional, visando aumentar seu poder militar e econômico, os soberanos absolutos se interessam pela saúde de seu povo (Faure In Corbin, 2008: 19). De agora em diante, o vocabulário e a forma de pensar médicos passavam a ser utilizados como forma de poder. O discurso médico se impunha de forma tão dominante e inquestionável, não apenas pelos esforços da medicina e do Estado em regular a população, mas pela própria sociedade, que estava obcecada, encantada e inquieta com o corpo e suas implicações (Faure In Corbin, 2008: 20). O caráter histórico das normas sexuais nos mostra como as ideias de sexualidade são fruto de uma construção social, evidenciando os pressupostos ideológicos que não se manifestavam claramente à afirmação do caráter pleno das mesmas (Almeida, 1995).

O papel da mulher era decisivo para a supremacia burguesa. Seguindo as normas sociais, a medicina determinava que uma mulher saudável era a que vivia em matrimonio, tendo relações sexuais com finalidade reprodutiva. Sua subjugação garantiria a dominação patriarcal e, consequentemente, a unificação familiar, o que seria legitimado pela negação da sexualidade feminina (Silva, 2007: 794).

O foco dado à mulheres e crianças tem relação com o que o Foucault descreve em História da Sexualidade I como “quatro grandes conjuntos estratégicos” que elaboram formas de saber e poder quando o assunto é sexo, são eles: a histerização do corpo feminino; a pedagogização do sexo da criança; a socialização dos modos de procriação; e a psiquiatrização e, consequentemente, a patologização do prazer classificado como perverso (Foucalt, 1988: 98). Foucault descreve uma histerização do corpo da mulher como um dos dispositivos estratégicos de controle, processo pelo qual seu corpo foi analisado e tido como portador de uma sexualidade inata e incontrolável e, por isso, essencialmente doente (Foucault, 1988).

A falta de poder quando se trata de sexualidade, coloca as mulheres em posição de submissão aos pais, maridos e médicos, ao corpo da mulher associa-se uma missão passiva e materna (Rohden, 2001). A prostituta, ao subverter esta ordem e, de certo modo, retomar o controle de sua sexualidade, é vista como doente. Uma das funções dos médicos era evidenciar as consequências terríveis da prostituição. Consequências que afetariam a sociedade em geral, uma vez que esta prática desestimulava o trabalho e estimulava o vício e outros problemas morais (Nossa, 2010). O intuito desse texto é um panorama introdutório das razões e processos da medicalização do corpo feminino no ocidente, a este blog caberão temas mais específicos como a Histeria, prostituição, higienismo e análise de estudos como o do médico italiano Césare Lombroso. 


Referências bibliográficas:

 

ALMEIDA, M. V. Senhores de Si: Uma Interpretação Antropológica da Masculinidade. Lisboa: Fim de Século, 1995.

 

FAURE, Olivier. O olhar dos médicos. CORBIN, Alain. História do Corpo: Da Revolução à Grande Guerra – Vol. II. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.

 

FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: A vontade de saber, tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.

 

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 12ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1996.

 GOULD, S. J. A Falsa Medida do Homem. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

 

MATTHEWS-GRIECO, Sara. Corpo e sexualidade na Europa do Antigo Regime. In: VIGARELLO, Georges. Historia do Corpo: Da Renascença às Luzes – Vol I. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.

 

MISKOLCI, Richard. Reflexões Sobre Normalidade e Desvio Social. Estudos de Sociologia, Araraquara, Vol. 13, N.14, 109-126, 2002/2003.

 

NOSSA, Paulo. O discurso biomédico da defesa da saúde e a prática da prostituição: do movimento higienista à era pós-sida. In SILVA, Manual C.;

 

NUNES, Rossana. Nas Sombras da Libertinagem: Francisco de Mello Franco (1757-1822) entre luzes e censura no mundo luso-brasileiro. 2011. 160f. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011.

 

ROHDEN, Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001.

 

ROSEN, G. Uma História da Saúde Pública. 2ª edição. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade Estadual Paulista; Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, 1994.

 

SILVA, Susana. Classificar e silenciar: vigilância e controlo institucionais sobre a prostituição feminina em Portugal. Análise Social, Portugal, vol. XLII (184), 789-810, 2007.

 

VIEIRA, Elisabeth Meloni. A medicalização do corpo feminino. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002.

 

VIGARELLO, Georges. Higiene do corpo e trabalho das aparências. In CORBIN, Alain. História do Corpo: Da Revolução à Grande Guerra – Vol. II. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.

 


 

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